histórias em papel · Raquel Graça

Histórias em papel é a nossa assinatura e é também o nome desta nova rubrica onde vos mostro a visão de alguns criativos - que partilham de uma certa afinidade pelo papel - tentando explorar as particularidades desta ligação.
No fundo tento dar corpo (e foco) ao que há muito defendo: o papel enquanto instrumento de registo, de criação de histórias e memórias - agora do ponto de vista mais individual e criativo, destas pessoas que admiro e acompanho há muito. 

 
histórias em papel beija-flor - raquel graça

A escolha da Raquel Graça, para estrear esta rubrica (a primeira de 12), foi intencional e cheia de significado, ora vejamos: fundou comigo o beija-flor (o que por si só já diz muito) e, apesar de já não ser sócia, continua a ser conselheira e referência, consequência direta da amizade que temos mas, essencialmente, da minha admiração pelo que é e pelo que faz.

Designer de formação desdobra-se e reinventa-se em várias áreas, como a pintura ou a fotografia. Nutre uma atração e procura constante pelo lado bonito em tudo o que a rodeia, o que faz com que o seu trabalho seja também ele belo e inspirador. 
Tem o dom da escrita - acredito que fortemente impulsionado pelo prazer diário da leitura - e outros que tais - como o de olhar para um espaço interior e perceber imediatamente como o tornaria mais acolhedor - mas é bem possível que o negue.

Fotografei-a sob o olhar atento da sua Alice, ao final da tarde, entre tintas, pincéis, cadernos e outros tantos papéis, no seu canto criativo que, apesar de pequeno, não é poupado a talento.

histórias em papel beija-flor - raquel graça
histórias em papel beija-flor - raquel graça

Vamos então saber qual a importância do papel no percurso criativo da Raquel?
Venham comigo! A viagem é bem bonita, garanto-vos!


Qual é a tua primeira memória relacionada com papel?
Livros e fotografias, sem conseguir muito bem fazer contas aos dois em separado. 
Desde miúda que adoro livros e sempre tive muitos lá por casa. Lembro-me até hoje, visualmente, dos que mais me marcaram.
Os meus padrinhos tinham uma livraria e acredito que isso acrescentou uma magia diferente a tudo isto. Recebia vários e sempre que lá ia o cheirinho era uma delicia e até levava para casa manuais escolares, apesar de não serem os escolhidos na minha escola, só porque gostava deles.
Depois, as fotografias. O meu pai trabalhava na área e não se poupava a rolos nas nossas férias e passeios. Lembro-me de termos sempre várias, algumas já tiradas por mim porque também recebi uma câmara pequenina vermelha, para eu usar à vontade, e de partilharmos as fotos com família e amigos, numa altura em que não havia redes sociais mas as partilhas aconteciam na mesma :)

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Tens algum ritual ou superstição que envolva papel? Como cheirar o caderno novo acabado de abrir, usar sempre o mesmo tipo de cadernos ou coleccionar bilhetes de viagens?
Já colecionei bilhetes de viagens, museus, cinema, mas a certa altura deixou de fazer sentido e confesso que não sentia nada quando via um bilhete de metro, por exemplo. Acho os bilhetes feios, e talvez seja por isso. Se os fizessem graficamente mais interessantes seriam de certeza parte das minhas caixinhas. Guardo todos os postais e bilhetinhos que me dão, às vezes faço cadernos de viagem (já fiz um com uma amiga, para oferecer a uma terceira que não conseguiu ir connosco, e foi muito divertido), e escrevo diários.

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São várias as caixas com postais guardados, cheios de histórias partilhadas com amigos, fylers que gostou ou que lhe evocam alguma memória.

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Um bilhete miserável de uma amiga :)

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Uma das caixas de fósforos da coleção que começou há uns anos e que espera fazer crescer!

Não tenho nenhum ritual específico, ou talvez tenha... sou incapaz de trabalhar com um computador sem ter papel ao lado. Preciso ter um caderno (ou folhas na pior das hipóteses) e lápis. Agora que digo que não tenho lembro-me de outro: quando tenho coisas mesmo más para escrever, e que quero só que saiam cá para fora para ficar mais leve, não escrevo no diário que está a uso, escrevo em folhas soltas para depois poder meter fora e fingir que aquelas coisas más não aconteceram (é pateta, eu sei, mas estará quase na equipa das superstições).

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Na gaveta dos cadernos está este jardim de memórias que desenhou para o beija-flor.

Como descreves a Raquel Graça criativa?
Essa é a mais bem disposta que conheço. Quando estou nesse estado estou bem, alegre, entusiasmada com o que está a acontecer no papel (às vezes no computador). Normalmente há um pouco de caos à minha volta, não sou aquela pessoa que precisa ou costuma ter a mesa de trabalho limpa. Ao contrário do que acontece no resto da casa, a mesa normalmente está cheia de coisas. Não consigo dizer desarrumada, na verdade, porque estar assim faz parte do estar a acontecer coisas. Uma mesa limpa, branca, traz-me só angústia e vontade de a encher de coisas :)

Como é o teu processo criativo? E o que sentes que mais o influencia? 
Começa sempre longe da mesa e do trabalho, quando trabalho para clientes ou quando trabalho para mim. Quando recebo um briefing para um novo trabalho fico ali, como costumam dizer, com "a pulga atrás da orelha" como se houvesse qualquer coisa a ser descoberta. Vai-me surgindo na cabeça de vez em quando e em qualquer situação. Depois, normalmente vem o momento em que alguma coisa faz sentido e estou sempre a fazer qualquer coisa como ler, cozinhar ou quando estou na praia. Já resolvi muita coisa na praia. Depois claro que vem a parte do sentar na mesa com as ideias e ferramentas para lhes dar forma, validar ou perceber que não era nada daquilo, e se não for recomeçar. Uso sempre papel ou ipad para esboços e listas de ideias, quando já acho que é por ali passo para o computador mesmo para desenhos finais e maquetes para clientes.
Com desenho e pintura acontece tudo mais ao acaso, estou sempre a ver coisas ou cenas que queria pintar, vou anotando coisas, guardo imensas imagens (fotografias, frames de filmes que vejo) para quando tiver um tempinho pegar nelas e fazer qualquer coisa.

histórias em papel beija-flor - raquel graça
histórias. empapel beija-flor - raquel graça

O papel tem lugar neste processo criativo? Se sim, de que forma?
Está sempre presente em todas as fases. Mesmo por uma questão de energia que nem sei bem explicar, tenho de estar rodeada por papel. Livros, cadernos, imagens coladas na parede, fotografias. Os cadernos em específico são base para desenhos e esboços, para pintar também, para fazer listas (não uso agenda digital, só quando preciso de lembretes para eventos).

histórias. empapel beija-flor - raquel graça

Há algum objecto de papel (livro, embalagem, caderno, postal, qualquer um!) que sintas que tenha marcado, e influenciado, o teu percurso criativo? Se sim, queres contar-nos qual e porquê?
Os livros, porque a certa altura lembro-me de fazer cópias das ilustrações que via. Eu passava horas a copiar coisas em miúda, quanto mais iguais ficavam mais orgulhosa em ficava também. Era um exercício que hoje entendo que me fazia bem e era importante. Observava e entendia ali muita coisa.
Depois, as embalagens, das quais sempre fui fã, acabara também por dar já origem a vários trabalhos. Desde miúda que pedia à minha mãe para comprar determinada coisa porque "era mais bonita" e escondia na gaveta dos legumes embalagens que achava feias. Adoro embalagens e já desenhei várias. Agora que pinto acabei por fazer uma muito gira que está já em várias casas, o que me deixa muito feliz. Nesse caso, e voltando à pergunta do processo criativo, andava eu no supermercado e quando olhei para a embalagem de farinha pensei "vou ter de te pintar" :)

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Serigrafia de Raquel Graça disponível aqui.

Embalagens que a Raquel foi recolhendo e que espera vir a pintar.

Tens por hábito usar um artigo de registo em papel (caderno, agenda, planner, folhas soltas, etc...) no teu dia a dia? Se sim, registas tudo nesse artigo ou vais distribuindo por vários? 
Tenho um caderno onde faço a minha agenda semanal. Percebi que prefiro folhas em branco para poder ter o espaço que preciso. Vou planeando uma semana de cada vez. Quando há eventos é que salto para o telemóvel para agendar com aviso. Este é o mais desorganizado sempre porque para além da "agenda" se tenho uma reunião é lá que anoto coisas, se estou ao telefone é lá que faço os rabiscos de quem não está ali mas está, enfim... vale tudo neste.

histórias em papel beija-flor - raquel graça
histórias em papel beija-flor - raquel graça
histórias em papel beija-flor - raquel graça

Os vários cadernos a uso neste momento.

Tenho cadernos de desenho, e folhas soltas que uso quase todos os dias para desenhos de aquecimento, porque acho que no caderno vão ficar para sempre e prefiro o compromisso da folha. Começou por ser assim, agora acho que já gosto daquelas folhas em específico, da cor delas e de as poder guarda como eu quiser. Quando quero usar um desenho, se estiver num caderno é mais chato para tirar. 
Depois tenho um caderno onde coloco as ideias que tenho para trabalhos de pintura e desenho. Mesmo que tenha ideias quando não estou com ele, ele não está comigo sempre, anoto nas notas do telemóvel e quando chego à mesa passo para ele.
Tenho um diário sempre, onde escrevo sobre tudo o que me apetece, é a minha terapia.
E tenho um outro caderno onde escrevo passagens de livros que me dizem qualquer coisa, ou frases soltas que vou ouvindo em músicas, podcasts... tudo o que são só palavras.

histórias em papel beija-flor - raquel graça

Costumas guardar e revisitar esses registos ou, pelo contrário, dás-lhes uso no momento da criação e depois desapegas-te deles com facilidade?
Guardo todos mas se há algum que acabou por ser só agenda (sem esboços ao lado, colagens, etc) consigo meter fora, mas tudo o resto fica comigo. Já desenhos, em folhas soltas, se acho que são maus meto fora, até porque não tenho muito espaço em casa e acho importante ir selecionando. Acho que sou apegada em boa medida porque não guardo por guardar. 

Acreditas que no futuro haverá sempre lugar para o papel? Ou que as opções de registo digitais acabarão por se sobrepor?
Acho que sim, assim como ainda há espaço para o vinil depois de décadas de música digital sempre em evolução. Já temos hoje novas ferramentas, que certamente serão mais vantajosas para algumas pessoas, mas haverá sempre quem prefira o papel e quem não consiga viver sem ele.

Tens algum objecto de papel que te desperte muitas memórias? Se sim, queres contar-nos a sua história?

Quando ouvi esta pergunta, lembrei-me de fotografias, gosto de as ver várias vezes aqui por casa. Depois veio-me à memória um livro de infância que guardo desde sempre e que me marcou. Quando digo marcar nem estou a falar das histórias (honestamente já não me lembro delas) mas das cores, das ilustrações, porque era o que mais me fascinava em miúda. Se eu não gostava muito desta parte já não tinha interesse no livro ou nos desenhos animados que passavam na televisão. Consigo descrever graficamente os meus favoritos, apesar de não me lembrar de nenhuma história. 

Como vivíamos num T2, o destralhar também fez sempre parte da nossa vida e volta a e meia eu tinha de fazer arrumações para dar coisas. Este ficou sempre e até veio comigo para a minha casa. Nem sei explicar bem o que sinto quando o vejo mas sei que me fez companhia muito boa :)

histórias em papel beija-flor - raquel graça
histórias em papel beija-flor - raquel graça

Muito obrigada Raquel pela partilha, pela disponibilidade e inspiração.
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Porto, março de 2025
fotografia: Susana Gomes (prata da casa)
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onde descobrir mais sobre o trabalho da Raquel: no site da mesma: raquelgraca.com, no novo/ressuscitado blog, na sua inspiradora página de instagram ou ainda espreitando a loja online.


histórias. empapel beija-flor - raquel graça

Há cerca de 4 anos iniciei no instagram uma rubrica, com o mesmo nome, em que convidava alguns dos nossos clientes a responderem a duas perguntas do porquê da escolha de um determinado produto beija-flor. Recolhi alguns testemunhos bonitos, que ainda hoje me sensibilizam muito, mas percebi que o formato não tinha o destaque merecido e que necessitava de ser ajustado, daí este novo modelo.